Onzedesetembrodedoismileum ou
"2001 – Enfim, A Odisséia... no Espaço"

Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino
Brasília, 12 de setembro de 2001


Não era o socialismo ou a barbárie? Pois então: a barbárie!

Estão sendo esgarçados os limites de tolerância, de respeito às diferenças de culturas, valores, verdades. Pretende-se impor uma racionalidade (?) a todo e qualquer grupo humano. Acontece que há grupos que pensam e vivem de maneiras muito diferentes desta forma considerada a melhor! E a verdade deles não é menos verdadeira que a dominante.

De certo modo, eu temia isso... Esperava por algo bárbaro, mas jamais isso, concretamente. Teme-se, mas se finge pra si mesmo, que o medo vai afastar a possibilidade de essas coisas ocorrerem.

É como quando você tenta argumentar com alguém que pensa diferentemente de você e a oprime, tortura-a, impede que você viva. A única solução é escapar àquela racionalidade imposta, agindo de maneira bruta, quase pré-humana, gritando, batendo, matando o outro, castrando-o (até que as torres são um bom símbolo fálico de poder, não?). Se é que é uma solução...

Mas, se não se escutaram palavras, vê-se o sangue derramado... e o buraco deixado na linda deusa novaiorque. Foi um golpe na integridade inabalável dos donos do mundo, que, afinal, com Bush, nem pra manter a pax americana se prestam.

Algo que se coloca aquém do humano, do simbólico, da palavra, da lei. É como se quebrassem o pacto que possibilitou a civilização. MAS NÃO É NEM MAIS NEM MENOS TERRÍVEL DO QUE AS ATROCIDADES DA INQUISIÇÃO, DO NAZISMO, DA GUERRA DO VIETNÃ, DO ATAQUE A PEARL HARBOR, DE HIROSHIMA E NAGAZAKI, DO STALINISMO, DA REVOLUÇÃO FRANCESA, DO MASSACRE DE POVOS INDÍGENAS.

Lembra-me a foto daquela criança vietnamita, correndo e se queimando. As imagens dos atentados a Jerusalem, dos campos de concentração, da guerra do Golfo outro dia mesmo, em que obras e monumentos antiquíssimos, do início de nossa civilização, foram destruídos... Lembrei-me do cinismo, do desprezo com que os ocidentais olhamos as culturas diferentes das nossas... Mas, ciente de que não é possível se olhar isso tudo de um ponto privilegiado, acima das perspectivas, penso, em última instância, na condição humana (tal como a vejo): falível, marcada pela finitude, pela falta. Dessa forma, tudo é pensável. Teoricamente.

O problema, no plano pessoal, é que estamos em nossas casas, vendo tudo isso, na mesma hora em que ocorre, e que está tudo tão próximo de nós... E, afinal, isso derruba a nossa crença de que os EUA são tão-fortes-que-não-adianta-nos-rebelarmos-contra-sua-dominação.

E nós?

E nós, que não resistimos nem a um sanduíche do Mac Donalds! Ou que já nem nos lembramos dos nomes que demos às coisas, de tanto nos calarmos e ouvirmos a voz do outro.

E nós, educadores e pesquisadores, que vivemos nosso dia-a-dia numa universidade 'marionetada' pela lógica deste império! Que, muitas vezes, escrevemos os papers que são valorizados por ele?

E nós, que, muitas vezes, julgamos esses outros grupos político-culturais e religiosos, como se fossem atrasados, ou pior que o 'nosso grupo' ocidental cristão democrático (?), tal como jogamos nosso lixo no espaço do outro?

E nós, que educamos nossos filhos para a competição, para o individualismo e para se calarem diante do dado, do tido como natural, do imposto, para se guiarem pelos critérios de verdade, beleza e bondade sugeridos pela grande mídia, que dissemina a melhor forma de ser, amar, realizar-se?

E nós? Quem somos nós? Aqueles que lutaram pelo socialismo, temendo a barbárie a que o capitalismo poderia levar? E que, agora, estupefatos, indignados, tomamos como fatalidade, tragédia, aquilo cuja preparação vimos assistindo cotidianamente, tal como a população alemã, que, sentindo o cheiro de corpos queimados, continuava, impotente, suas tarefas do dia-a-dia?

Onde temos estado? Sonhando com um passado idílico ou um futuro automatizado, com viagens à Lua e guerra nas estrelas, ninados pelo I.A. de Spielgerg, mirando as tendências do mercado? Onde temos estado, enquanto bilhões de pessoas, no Brasil e no mundo, morrem de fome, matando-se, por falta de direito ao pão e à palavra? Onde temos estado, enquanto mulheres são humilhadas em todos os cantos do planeta, homossexuais mortos, negros excluídos? Enquanto políticos se corrompem, florestas são devastadas e animais se extinguem?

Temos estado brincando de viver? Temos estado jogando o grande video game da História..., com legenda em inglês?

Esses momentos, de quebra da rotina, de suspensão da racionalidade, de valores, de crenças, de susto, nos tiram, por um lapso de tempo, de nossas peles - históricas, culturais, sociais, egóicas, fisiológicas, até - e nos fazem vislumbrar a crueza da carne, lembram-nos nossa condição de mortais, não só enquanto indivíduos, mas enquanto cultura, história e espécie. Esses momentos podem nos permitir voar para além - e/ou aquém – de nossos limites. E reassumir o leme de nossas vidas, limitados, mas, pelo menos, conscientes da existência do outro e da importância de se tentar, sempre, suspeitar das afirmações, das certezas, do que está pronto, dado, e de se criar, perguntar, assumir a condição humana da busca.

A menos que queiramos brincar de mocinho-e-bandido...



©Copyright   Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino, Professora-assistente do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, do Instituto de Psicologia, da UnB. Brasília, 12 de setembro de 2001. - Mensagem recebida por e-mail, em 18 de setembro de 2001. Mensagem que merece ser guardada sobre a reação do povo americano frente ao ataque terrorista aos EUA.

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