Os primeiros passos na Lua
Revista Veja, 16 de julho 1969

Sombras frias, hostis e imensas serão o único abrigo dos primeiros movimentos tímidos, cuidadosamente medidos e surpreendentes de um homem sozinho sobre o chão rude e estranho da Lua. Um silêncio brutal e absurdo, como nunca ninguém sentiu, será o único eco de seus passos. As sombras inimigas terão sido criadas na Lua pelo próprio homem: tudo foi calculado para que, na madrugada de 21 de julho, o Módulo Lunar da Apollo 11 pouse de modo que a portinhola de saída não fique exposta ao sol que estará nascendo lentamente. Mas o silêncio desconhecido é natural na Lua, que não tem ar para que o som se propague. A recepção que o satélite tem preparada para os seus primeiros visitantes não lhes deixa muita escolha: eles podem preferir ficar sob os 130 graus negativos da sombra gelada da noite lunar a arriscar-se sob o calor violento da área que o sol ilumina. Podem até mesmo, como foi resolvido, descer no amanhecer mais ameno. Neil Armstrong, comandante da Missão Apollo 11 e primeiro homem a andar sobre a Lua, sentirá apenas as batidas de seu coração, o sangue a correr em sua nuca e o arfar de seus pulmões. Seus pés se arrastarão pesados e lentos sobre o chão pouco colorido, mas seus movimentos não repercutirão em seus ouvidos - e sim num sismógrafo da Missão, tão sensível que transmitirá as vibrações dos passos silenciosos de Armstrong a uma agulha que dançará agitada no mostrador deto de branco, com as mãos finas e firmes do piloto da Guerra da Coréia escondidas por grossas luvas negras a envolver os dois lados de uma escada de metal, vibrarão livres no vazio por um momento. Seus pés bem treinados por mil horas de ensaios cansativos, acomodados em sapatos confortáveis e protegidos por pesadas galochas, cairão juntos, lentos e desajeitados, sobre o chão seco, mole e cinzento da Lua. Deixarão ali num movimento só, as duas primeiras marcas da presença do homem fora do mundo em que nasceu e sempre viveu. A forma simples e a finalidade evidente da escada clara de alumínio, presa a uma das patas tortuosas e desengonçadas da metade inferior do Módulo Lunar da Apollo 11, seriam reconhecidas com facilidade pelo dono primitivo de uma casa sobre palafitas de milhares de anos atrás. Mas nem um selvagem nem um pintor de paredes julgariam adequado o modo pelo qual Neil Armstrong vai fazer uso do velho instrumento que o homem inventou para subir e descer e que seria o único objeto familiar a um egípcio antigo ou a um canibal em toda a Missão Apollo.

O andar diferente - Armstrong não descerá os nove lances da escada pé ante pé, degrau por degrau. Levará dez minutos para descer. Deixará as mãos escorregarem pelo metal liso das barras laterais, com os pés sem apoio no vácuo. Também não descerá a escada até o fim, sem antes fazer "um ensaio": terá de descansar os pés no primeiro degrau e tentar subir de volta, para descobrir se na Lua, onde a gravidade vale um sexto da gravidade terrestre, um homem pode realmente subir uma escada. Só depois de voltar à plataforma de desembarque é que Armstrong se deixará descer definitivamente. De passagem, ligará a câmara fixa de televisão em branco e preto que, presa do lado de fora do Módulo, junto à escada, transmitirá para milhões de pessoas os primeiros passos do homem na Lua. Serão muito parecidos com os primeiros passos que o homem dá na Terra, quando é bebê, já deixou de engatinhar e ainda não começou a andar. O primeiro movimento não será do pé, mas do joelho, levantado para a frente, numa lentidão impressionante - embora o astronauta se movimente tão depressa quanto pode. Seu peso e seis vezes que na Terra e todo o seu equipamento (82 kg que na Lua pesam 14) somando ao seu corpo, não chega a pesar o quanto só o seu corpo pesaria na Terra. O problema maior é a resistência que o astronauta tem de enfrentar dentro do seu próprio traje lunar, que é uma verdadeira cabina espacial, com sistemas de pressurização e de refrigeração a água, verdadeira atmosfera ambulante. Armstrong andará então sobre a Lua como um grande mono branco, pesado e lento.

A solidão povoada - Ele será o único ser humano em todo um vasto mundo feito só de desolação, mas em nenhum momento estará só. Não parará de falar um instante a Edwin Aldrin, que estará ainda no Módulo Lunar pousado sobre a Lua, ou a Michael Collins, que não sairá da nave de comando em órbita a cerca de 100 km de altura, sobre o equador satélite. Falará ao comando de operações na Terra e aos médicos de Houston. Armstrong contará se é fácil ou difícil andar sobre a Lua, dirá que cores e formas que está vendo. Todo o seu comportamento , como o dos outros dois , estará sendo transmitido para a Terra: seu ritmo cardíaco, a regularidade de sua respiração , nível de suor e trabalho dos intestinos. Eles são, afinal, apenas três peças mais entre milhões de outras. Quatrocentas mil pessoas, entre cientistas, técnicos e operários, trabalharam direta ou indiretamente no Projeto Apollo. O silêncio absoluto do passeio na Lua será precedido por um dos barulhos mais espantosos já criados pelas mãos do homem, o lançamento do foguete Saturno com a nave Apollo, às 10 horas e 32 minutos do dia 16 de julho (poderá ser adiado para 18 e 21) . No meio da viagem, a 200.000 quilômetros de distância, a Terra aparecerá tão pequena no visor da nave, que um astronauta poderia deixar de vê-la apenas encostando a mão sobre o vidro, tal como uma criança junto à vidraça "esconde" a lâmpada de um poste. Mas ainda assim continuarão ligados à Terra e em tudo dependendo dela.

Os perigos da Lua - Haverá porém algumas ocasiões em que Collins, Armstrong e Aldrin poderão estar totalmente sozinhos no espaço ou num mundo pouco amigo. Após a Apollo 11 entrar em órbita de espera em volta do satélite lunar terá de separar-se na Lua. A nave estará acabando de sair do lado invisível da Lua, onde as telecomunicações não chegam e os astronautas é que terão de dirigir a operação. O radar é desligado a 150m do chão e a 60 m a velocidade de descida passa de 8 a 1 medo por segundo. Os foguetes do Módulo na brecada para o pouso, poderão provocar na superfície da Lua uma nuvem de poeira - levaria horas para assentar com a pequena gravidade como o Módulo só tem condições de realizar um pouso visual. Aldrin e Armstrong teriam rapidamente e descer à Lua. E se na hora Aldrin e Arinstrong descobrirem que o lugar fotografado pelo Luna Orbiter de uma altura de 95 km em 1967, não é tão bom quanto se imaginava? Até 20 segundos antes de as patas do Módulo tocarem o solo eles ainda podem mudar de direção, ou escolher outro lugar de pouso (em vez de região próxima à cratera Sabine poderão escolher os lugares 3 ou 5. Finalmente, se um astronauta, ao andar sobre a Lua, tropeçar ou escorregar, levar um tombo e for ao chão, nada nem ninguém poderá ajudá-lo. Se ele cair de bruços, ainda será relativamente fácil levantar-se: calcula-se que, fazendo um grande esforço para flexionar os braços, em pouco mais de 10 minutos o astronauta conseguirá pôr-se de pé outra vez. Se, porém, cair de costas sobre o chão, ficará na mesma situação de uma tartaruga virada sobre o casco. Terá de agitar braços e pernas para um lado até conseguir virar-se e ficar caído de bruços. Para começar a flexão de dez minutos.

Trabalho e amostras - Um astronauta dificilmente conseguiria ajudar um companheiro caído. Pois o ideal é que o astronauta só movimente os braços entre 90 e 125 em de altura do chão; é totalmente impossível que ele carregue, na Lua, qualquer coisa, mesmo a mais leve, abaixo de 70 cm ou acima de 165 cm do solo. De qualquer forma, suas mãos, mesmo vazias, não podem ir a menos de 55 cm ou a mais de 200 cm de altura. Além disso, é impossível sentar. Ele pode sentar-se "dentro" do traje lunar, onde fica "flutuando" (é um traje só para a Lua, vestido sobre o traje espacial usado no Módulo Lunar e no Módulo de Comando). Mas a roupa continua "em pé, sem agachar-se", de modo que é realmente impossível levar a mão abaixo do joelho. É, assim, quase impossível ajudar um companheiro caído. Por tudo isso, vai ser muito difícil trabalhar sobre a Lua. Calcula-se que as 2 horas e 41 minutos que Armstrong e Aldrin passarão andando sobre a Lua, colhendo amostras, instalando aparelhos e tirando fotos e filmes, equivalerão a 16 horas de esforço de um operário braçal.

Sono e bacon - Das 21 horas e 27 minutos em que o Módulo Lunar vai ficar pousado sobre a Lua, 8 horas e 40 serão usadas para dormir - e 4 horas e 43 minutos para comer (mais da metade do tempo total). Logo que o Módulo Lunar tiver pousado, Armstrong e Aldrin o inspecionarão peça por peça, durante 2 horas e 4 minutos preparando uma eventual volta apressada. Então, durante 35 minutos, comerão bacon e Pêssegos, tornarão café e suco de "grapefruit". Há setenta "menus" à escolha na Apollo 11 - no Módulo Lunar apenas três - inclusive comida tradicional, embrulhada em saquinhos de plástico, como espaguete, que se come com colher. Talvez Armstrong sonhe o que sempre sonhou em criança, que se prendesse a respiração passaria a flutuar no ar.

Sopa e trabalho - Eles terão tomado uma pílula para dormir e, se não acordarem exatamente quatro horas depois, um sinal da Terra os obrigará, não a se levantarem mas a se mexerem - Pois a cabina do Módulo Lunar mede 2,35m de diâmetro por 1,07 m de largura e não daria para os dois se deitarem, além do que no espaço ou na baixa gravidade lunar é impossível deitar-se, E Aldrin e Armstrong realmente se mexerão, passando mais uma hora comendo bife, sopa de galinha, salada com presunto, chocolate, uva e café. Durante as duas horas seguintes ficarão preparando o passeio sobre a Lua. Esta preparação consiste, fundamentalmente, na difícil tarefa de vestir o traje lunar sobre o traje espacial nos 4,5 metros cúbicos da cabina: pode ser comparada à situação de duas moças que tentassem no mesmo tempo, numa cabina telefônica, trajar vestidos longos. Já dentro dos seus escafandros, os astronautas levarão dez minutos testando o Sistema de Preservação da Vida, um complicado aparelho que eles levam às costas, como mochila para assegurar pressão e temperatura terrestres dentro do traje lunar. Acima da mochila, também às costas, vão os tubos de oxigênio.

As contingências - Por uma portinhola sai então Armstrong, e passando por outra portinhola já está na vazia atmosfera lunar, sobre a plataforma externa de onde desce a escada. No solo, Armstrong tem dez minutos para dar os primeiros passos humanos sobre o satélite, fincar rapidamente no chão uma bandeira americana, armada com arames para se sustentar sem vento, que traz enrolada num tubo junto ao traje. A partir daí, Aldrin, no Módulo, começa a filmar as cenas que já estavam sendo televisionadas pela câmara fixa. De um bolso em sua perna esquerda, Armstrong tira urna espécie de coador de café com cabo bem grande. É a Tarefa de Amostras de Emergência, isto é, a primeira coisa que Armstrong tem de fazer: colher, passando a rede pela superfície lunar qualquer poeira ou pedra. Terá dez minutos para soltar o tal coador e apanhar o pedaço que for mais fácil na Lua, livrar-se do cabo - jogá-lo fora ali mesmo - e guardar a rede com as amostras dentro de um dos bolsos externos do traje lunar. A Terra precisa de pedaços da Lua, quaisquer pedaços, e portanto a primeira coisa a fazer é apanhá-los; rapidamente. Isso, pelo menos, chegará à Terra, pois, aconteça o que acontecer, mesmo que Armstrong não possa ficar mais que vinte minutos andando sobre a Lua, ninguém em Cabo Kennedy acredita que ele tenha coragem de voltar sem essas amostras. Ou sem as calças em cujo bolso elas devem estar.

O grande passeio - Da plataforma, Aldrin entregará a Armstrong um mastro pouco menos alto que uma pessoa. tendo por estandarte uma delgada folha de alumínio. É o Experimento do Vento Solar: o mastro será fincado no chão lunar e a folha de alumínio detectará átomos de gases nobres expulsos do Sol em explosões e que chegam à Lua como "vento". A folha será trazida de volta à Terra e levada a um laboratório suíço, o único que sabe lidar com essas coisas. Chegou a vez de Aldrin descer, trazendo ao pescoço uma máquina fotográfica e junto ao corpo uma câmara de televisão a cores, que entregará a Armstrong para montar. O próprio Aldrin soltará a outra câmara, em branco e preto, fixada junto à escada, e a montará sobre um tripé no chão. Os dois retirarão do lado de fora do Módulo três maletas de alumínio. Armstrong carregará a mais pesada - 47 quilos terrestres (8 lunares) - até o ponto mais distante possível do Módulo (ele tem ordem de não se movimentar num raio além de 30 metros). Colocará a maleta sobre o chão, apertará um botão, e ela se abrirá repentinamente, como numa mágica, transformando-se em paletas, antenas e emissores. É o sismógrafo lunar, que mandará durante dois anos 712 informações por segundo sobre qualquer movimento na Lua - mesmo o passo de uma pessoa. A segunda maleta, de 30 quilos terrestres (5 lunares), também sofrerá uma mudança, ao rápido toque de botão: é um retrorefletor, um espelho de raios laser. Mandando-se da Terra em direção a esse espelho um raio laser, ele o refletirá diretamente para o lugar de onde partiu. Assim será possível não só determinar, até os últimos milímetros, a exata distância da Terra à Lua a cada instante, como também, por exemplo, se o Brasil, realmente, cada vez se afasta mais da África, à qual já esteve unido segundo uma teoria geológica.

As pedras escolhidas - Ninguém sabe exatamente como Armstrong e Aldrin carregarão essas maletas, nem o esforço que isso lhes custará. Na Lua, o problema maior para o homem, ao que parece, não é fazer força ou carregar peso, é mover-se, com ou sem peso. Se eles conseguirem instalar as duas maletas, irão ocupar-se da terceira. Que não tem botão nem se transforma em nada: é mesmo uma maleta, cheia de saquinhos de plástico. Com uma espécie de alicate e um instrumento de cabo comprido muito parecido com uma pá de lixo, Armstrong começará o Experimento das Amostras Determinadas. Isto é, reco-lherá pedras e poeiras da Lua que lhe pareçam interessantes - não ao acaso, como na Tarefa das Amostras de Emergência - e as irá colocando nos saqui-nhos. Trabalhar na Lua é assim: Aldrin vai apenas fotografar o esforço recolhe-dor de Armstrong - mas vai ficar tão cansado quanto ele. Todas essas amostras da Lua, entretanto, estão viciadas pelos gases dos foguetes do Módulo, que terão se espalhado por alguns quilômetros em volta do local do pouso. Por isso, a úl-tima experiência será retirar do subsolo, com uma espécie de seringa de injeção, alguma terra lunar que não tenha sido atingida pelos gases terrestres. Todo esse material vai nos saquinhos de plástico, até um total de 50 quilos terrestres de Lua.

Restos no espaço - Aldrin, que foi o último a sair, será o primeiro a voltar ao Módulo. Armstrong o seguirá vinte minutos depois, com o último saquinho de plástico. Tirarão os trajes lunares e se sentirão mais confortáveis só com o traje espacial. Talvez mais confortáveis do que na semana passada, na sua última entrevista à imprensa, quando tiveram de usar paletó e gravata e máscaras sanitárias no rosto (os repórteres riram muito quando os astronautas entraram numa cabina totalmente isolada, com paredes de vidro, para só então tirarem as máscaras). Ligarão os foguetes do estágio superior do Módulo e abandonarão sobre a Lua o estágio inferior, com sua escada, sua plataforma e sua placa assinada pelo Presidente Nixon. Deixarão no espaço o Módulo Lunar, estágio superior, assim que houver em órbita lunar o acoplamento com a Nave Apollo e os dois visitantes da Lua, por duas escotilhas e um túnel, voltarem à companhia de Collins. Do foguete Saturno de 109 metros de altura e 3 000 toneladas, voltará à Terra apenas o Módulo de Comando - nem mesmo a Nave Apollo inteira, tal como ficou em órbita lunar com Collins, pois antes de descer no Pacífico, perto do Havaí, ela perderá também o Módulo de Serviço. Então Armstrong, Aldrin e Collins ficarão muito mais separados do mundo do que quando estavam na Lua: três semanas de quarentena, tendo contato direto apenas com três médicos. Nas imediações do salão de quarentena as instruções da NASA aos curiosos são rigorosíssimas: é proibido fumar, mascar chiclete, apostar em cavalos e "usar com demasiada freqüência palavras de baixo calão". A NASA deve imaginar que, perto dos conquistadores da Lua, não se deve fazer essas coisas.


©Copyright   Texto publicado originalmente na revista Veja, no dia 16 de julho 1969, às vésperas do primeiro pouso tripulado na Lua. Encontrei o texto no site de Ulisses Cavalcante (http://www.spacestation.hpg.ig.com.br/), no endereço http://www.spacestation.hpg.ig.com.br/conquistas/vespecialua.htm.

ZAMORIM :: Textos :: http://zamorim.com/textos/lua1.html